(Originalmente publicado em Gotika.)
As minhas desculpas pela má qualidade das fotos. O meu telemóvel nem sequer tem zoom.
Quinta-feira, 2 de Junho. Coliseu de Lisboa. Os Dead Can Dance dão o segundo concerto na capital, último de uma digressão de dois meses. É a primeira vez que vejo os Dead Can Dance em concerto, a única das minhas bandas preferidas que ainda não tinha visto ao vivo. (Com a funesta excepção de Joy Division, que nunca verei.)
Os sonhos são irreais e irrealistas. São intimistas e emocionais. Este texto não pode fugir-lhes.
Foi um sonho concretizado. Um sonho que durante bastantes anos julguei nunca realizar. Primeiro, porque a banda se separou e Lisa Gerrard e Brendan Perry se dedicaram a projectos a solo. Segundo, depois da reunião da banda, que já tinha actuado em Portugal nesta nova encarnação, devido a questões profissionais que não me permitem assistir a concertos como gostaria. Por fim, devido à pandemia, que parecia nunca mais acabar.
Já tinha comprado o bilhete e ainda não acreditava que era real. Só acreditei na sala do Coliseu, quando Lisa Gerard começou a cantar “Yulunga”. Era real, estava acontecer. No dia seguinte questionei-me se aconteceu de facto. Os sonhos também parecem muito reais quando estamos a sonhá-los.
Tenho a certeza de que a culpa foi minha, mas saí do Coliseu insatisfeita, como se nem tivesse lá estado. O concerto foi curto. Uma hora e vinte minutos e Brendan Perry disse-nos “Obrigado. Boa noite” em português correcto, e a banda preparou-se para sair. É claro que voltou, para mais um encore de 20 minutos. Uma hora e quarenta minutos e o concerto acabava. Brendan Perry disse que era o último da digressão e que estavam cansados. Talvez tenha sido isso? Ou talvez eu me tenha fartado de esperar pelo sonho de ver os Dead Can Dance e os tenha envolto numa expectativa irrealista que não pode jamais rivalizar com a minha relação íntima e inexprimível com a música que amo desde que a conheço, há tantas décadas que nem vou dizer quantas?
Lisa e Brandan revezaram-se, uma canção cada. Não me posso queixar da falta de êxitos. A banda percorreu a maior parte dos álbuns e todas as suas fases de evolução, e as boas canções são tantas (não existe uma canção má!) que se fossem tentar tocá-las todas ainda lá estávamos. A plateia encontrava-se repleta. Já as bancadas, não. Talvez pelo preço dos bilhetes, talvez por ser o segundo concerto em dias consecutivos, talvez ainda medo da pandemia? A verdade é que já vi o Coliseu a abarrotar muitas vezes, e não foi o caso.
Mas o público que compareceu sabia ao que ia. Algumas palmas no início de canções mais conhecidas eram rapidamente silenciadas para não se perder uma nota do som, uma sílaba da voz. Em momentos, quando Lisa cantou, todo o Coliseu ficou em silêncio. Mesmerizado, como na canção. E não faltaram as canções hipnotizantes: “Yulunga (Spirit Dance)”, “The Host of Seraphim”, “Sanvean”, “Persian Love Song”, “Black Sun”, e, a minha preferida das preferidas, “Cantara”. Já tinha ouvido os Dead Can Dance em concerto numa fase de maturidade da banda e sabia o que esperar, mas nunca deixo de ficar impressionada com o poder transcendente daquela voz. Já não é a jovem Lisa que cantava “Cantara” em “Within The Realm Of A Dying Sun”. A voz encorpou, engraveceu, mas continua a ser a voz da Deusa. A interpretação de Brendan Perry está praticamente na mesma, quase nem se nota a idade.
Então, o que é que eu queria afinal? Mais canções? E quais, se há tantas? “The Cardinal Sin”? “Xavier”? “Summoning of the Muse”? “The Arrival And The Reunion”? “As The Bell Rings The Maypole Spins”? “Nierika”? Impossível escolher.
O que eu queria mesmo era ficar arrepiada, era sentir calafrios pela espinha abaixo. Já ouvi quem se referisse a um concerto dos Dead Can Dance como uma experiência místico-religiosa, já ouvi chamar-lhe ritual xamânico. Infelizmente, não senti a magia que queria sentir. Sim, abanei a cabeça, bati palmas, dancei na cadeira, não consegui tirar os olhos do palco. Mas a hipnose nunca me arrebatou, nunca me levou para o mundo fora do mundo onde costumo ir quando ouço Dead Can Dance em casa nos “dias certos”. Culpa minha, volto a dizer. Talvez a minha relação com a música, tão idealizada e adorada durante tanto tempo que já é só minha, nunca consiga rivalizar com a realidade dos intérpretes a tocá-la à minha frente. Mas não é verdade que as grandes obras ganham vida própria, que fogem aos criadores?
Saí com a sensação de “dever cumprido”, a última banda que me faltava, a voz da Deusa a ecoar-me na memória. Devia-lhe essa reverência e prestei-lha. Mas queria mais, queria arrepios, e isso não aconteceu.
Se esta review não tivesse levado o tom intimista que lhe quis dar, diria apenas que foi um concerto soberbo, impecável em voz e som e 100% profissional, auxiliado por instrumentistas de cinco estrelas, que só pecou por ser curto. O que eu queria, a transcendência, o sonho em vigília, o arrebatamento, depende mais do ouvinte do que do intérprete. É preciso que o ouvinte se deixe arrebatar. Se calhar não era o “dia certo”.
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