Não sei se esta foi a primeira vez que li "O Castelo de Otranto". Lembro-me de ter estado várias vezes na Feira do Livro, com este nas mãos, folheando e questionando se deveria ou não comprar. Se comprei, e se li, não me lembrava absolutamente nada da história. Algo me diz que não cheguei a ler, por duas razões. A primeira, porque me parecia um conto demasiado pequeno em que gastar o meu dinheiro (sempre preferi histórias longas). A segunda, porque folheando não me pareceu suficientemente sobrenatural numa altura em que eu procurava sobretudo os clássicos mais marcantes.
Isto, de procurar o mais gritante, em si também é curioso, porque a um leitor é necessário conhecer os extremos antes de conseguir apreciar a subtileza do intermédio.
Só agora, finalmente, me debrucei sobre "O Castelo de Otranto", considerada a primeira novela gótica, e a li com outros olhos, e uma uma outra percepção tão vasta e profunda que milhentas ideias me surgiram de seguida. Não sei se conseguirei expor sequer algumas. Foi uma espécie de turbilhão que ainda tem de ser melhor estudado. (Quando digo "estudado", refiro-me à análise mais cuidada desta minha tese embrionária.)
"O Castelo de Otranto" conta uma história interessante sobre um tirano que tudo faz para manter a descendência masculina do seu principado de modo a que este não se extinga por falta de legítimos herdeiros. E é isto, não há nada mais. A maldição, os "efeitos sobrenaturais", são secundários. Por alguma razão lhes chamo "efeitos", como se aplica o termo nos filmes. O que é realmente interessante na história é a forma como Manfred tenta manipular todos os que entram em contacto com ele, e a profundidade psicológica desta personagem escrita no século XVIII (1764). Por isto, sim, fiquei maravilhada.
E decidi procurar mais sobre a "novela gótica". Diz a wikipedia: a novela gótica é um género literário que combina elementos de horror e romance.
Foi aqui que a minha mente se pôs a trabalhar a 1000 à hora. Não a respeito da novela gótica clássica, mas de tudo aquilo que actualmente caracteriza o movimento gótico como o conhecemos. Haverá, actualmente, uma literatura gótica, isto é, moderna? E terá já alguma coisa a ver com o clássico?
Afinal, quanta música gótica trata de fantasmas? Vejam-se os clássicos. As referências são muitas, mas os fantasmas já não estão no exterior. Os fantasmas, actualmente, são projecções dos medos inconscientes. (Freud fazia mesmo muita falta à literatura). E se é a profundidade psicológica de uma personagem como Manfred que me toca, não o é menos o drama existencial dos vampiros de Anne Rice, que já não são personagens de terror, são seres humanos que por acaso são vampiros e que por essa razão conseguem analisar a condição humana por uma lente privilegiada. Na minha opinião, há muito que a literatura que é lida pelo movimento gótico se afastou do "terror" clássico, mais ou menos da mesma maneira que alguém disse dos Joy Division que os seus temas eram góticos, e não consta que falassem de fantasmas. Pelo menos dos fantasmas de fora. E há muito tempo que o verdadeiro terror vem das profundidades da alma, sem sequer a necessidade de o projectar num monstro algures na noite lá fora. A banda que melhor conseguiu fazer esta ligação, escrevendo canções de amor que algumas pessoas interpretaram como a possessão por um íncubo, foram os Fields of the Nephilim. Quando alguém comentou isto, mais ou menos na brincadeira, eu lembro-me de ter perguntado: não é isso que é o sexo, qualquer e todo o sexo? Qual é a diferença? E se é assustador? E desde quando sentir que a felicidade depende de um ser que nos é alheio e incontrolável não é assustador? Para quê mais monstros, se já há tantos onde eles realmente existem e sempre existiram?
Eram muito ingénuos, estes primeiros escritores góticos, mas enfim... Freud fazia falta.
Original in Gotika
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sexta-feira, 7 de maio de 2010
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
True Blood
(Na versão portuguesa "Sangue Fresco", em exibição na RTP1)
Qual é o problema desta série? Um dos problemas, reparo agora, é por onde começar a enumerar os problemas, que não são poucos.
Comecemos pelo mais imediato. A princípio (digo primeira temporada) dá a sensação de que os autores não sabem se querem fazer uma série de vampiros ou uma série dramática sobre os usos e mentalidades do sul dos Estados Unidos. Atenção, nada tenho contra séries dramáticas, antes pelo contrário. Tenho tudo contra misturas mal feitas. E esta mistura não podia ter saído pior. Pergunto-me mesmo se, depois de cada episódio, os autores não faziam uma sondagem às preferências dos espectadores e lá iam "navegando" a série à mercê das audiências.
O que não era preciso. A série tem excelentes pernas para andar: depois da descoberta científica de um produto substituto do sangue humano, os vampiros já podem "sair do armário" e reivindicar os seus "direitos". Depois de séculos nas sombras, decidem finalmente viver integrados em sociedade. É muito gay mas é mesmo assim.
A ideia é original e ousada. Não era preciso mais nada. Não era preciso, por exemplo, misturá-la com os dramas de uma mãe alcoólica e ultra-evangélica que negligencia a filha. Isso é outro argumento. No máximo, a questão seria abordada, sem nunca perder de vista o coluna vertebral da história "principal". A certa altura, pelo contrário, a série já nem tem coluna vertebral, de tão (mal) fragmentada.
Volto a insistir que nada tenho contra séries dramáticas. Veja-se o caso de Anne Rice, que tão bem faz nos seus livros o casamento entre os vampiros e a mesmíssima cultura do sul dos Estados Unidos. (Olha a série a perder originalidade... e pontos!) Para quem tem preguiça de ler os livros, o filme "Entrevista com um vampiro" exemplifica muito bem do que falo. Os livros fazem-no ainda melhor, prova de que a mistura pode ser feita... se bem feita. "True Blood" faz mal.
A par destas duas linhas directoras, vampiros + drama, surge a terceira, vampiros + drama + soft porno. Se calhar nem é tanto a questão de os vampiros terem apetite sexual o que me desgosta (por repulsiva que me seja a ideia de um vampiro a fazer sexo, não se a subtileza do vampiro romântico, desde os tempos de Lord Ruthven, em "The Vampyre" de Jonh Polidori, é exactamente a metáfora do desejo, metáfora que "True Blood" transforma em minha opinião em blasfémia -- por pouco que a minha opinião valha), mas o facto de não se perder nenhuma oportunidade de meter toda a gente a fazer sexo. Pretos com brancos, brancos com brancos, pretos com pretos, vampiros com mulheres, vampiros com homens, vampiros com vampiros, e só falta alguém fazê-lo com o cão. Sim, precisamente esse cão, em forma de cão. Olha o que se poupa em downloads porno!
Entretanto estávamos a falar de quê, que já me esqueci? Ah, sim, a série de vampiros. Pois a série de vampiros, no meio de toda esta fodenguice, torna-se um bocado difícil de acompanhar. Pergunto-me mesmo se existe...
Concedo que existem boas cenas (de vampiros, esclareça-se), e uma das notas positivas vai para o vampiro Eric Northman, um vampiro sueco e medieval, que assim que aparece na série lhe dá logo uma inesperada pica (falo de adrenalina):
Isto sim, é um senhor vampiro, antigo e ameaçador, envolto nas sombras do bar Fangtasia, que nos arrepia a espinha por muitas razões. Aqui está a metáfora, um digno representante de Lord Ruthven, de Drácula, de Lestat, de todos os vampiros perigosos e sedutores de que se possam lembrar na história da literatura e do cinema. Nem quando aparece a pintar o cabelo perde o carisma. Afinal, quem disse que um vampiro não pode ser vaidoso? Infelizmente, tinham de estragar, e na segunda temporada põem o senhor da fotografia vestido de fato de treino, a fazer compras num supermercado. Já tem o cabelo curto, e para compor o ramalhete só falta estar também oleoso. Um cachecol do Benfica ao pescoço e tornar-se-ia um digno candidato para as recentes séries portuguesas. "Liedson, marca-me essa merda ou chupo-te o sangue todo, caralho!", podia ser uma das suas falas. (O quê, Liedson não é do Benfica? Então mudem o cachecol.)
Fica o desgosto, e a fotografia para lembrar a primeira temporada.
Voltando a "True Blood", que é difícil dada a dispersão em que a própria série se perde, tanta que como disse a princípio se torna difícil (e maçudo) apontar-lhe os defeitos todos, não contentes com esta mistura intragável os autores ainda decidiram juntar-lhe shape shifters, deusas gregas, e o diabo a sete, porque sabe-se lá mais o que pode aparecer. Sim, porque entretanto o próprio shape shifter já "avisou" os espectadores de que não é um lobisomem, porque "os lobisomens são uma coisa completamente diferente". Boa. E uns zombies também, porque não? Falando em seres sobrenaturais, a série tornou-se tão sem pés nem cabeça que mais valia dar-lhe o tiro de misericórdia. Na minha opinião entravam por aquela terra de Bonstemps os irmãos Winchester (sim, esses mesmos, do "Sobrenatural") e matavam à caçadeira aquela bicharada toda: vampiros xungas, deusas gregas de mau feitio, homens-cão... e todos os seres humanos patéticos que por lá pululam. Evangélicos e "Jesus people" à cabeça.
Original in Gotika
sábado, 17 de outubro de 2009
"O Historiador" ("The Historian") por Elizabeth Kostova
Vlad Drakul, o Empalador, príncipe da Valáquia (retrato)
Não, eu não acredito que se nos dias de hoje Vlad Drakul fosse vivo, ou morto-vivo, que é a mesma coisa, se tornasse num estudioso rato de biblioteca. Custa-me até conceber como pode alguém ter tal ideia, excepto se a autora andou a ler Anne Rice e confundiu Drácula com o vampiro Marius, esse sim, um coleccionador, um historiador, um erudito. Mas o vampiro Marius era um civilizado e educado cidadão do Império Romano, não um sociopata que ficou infame para a História sob o nome de o Empalador. Tamanha mudança de personalidade, não obstante os 500 anos do vampiro, ou nunca aconteceria ou teria de ser muito bem explicadinha - e nisto a autora não convence o leitor familiarizado com a carreira do sociopático príncipe da Valáquia, ao lado do qual, devido à sua desumana crueldade, o próprio Hitler nem parece um mau rapaz.
Posto isto, que de alguma forma destruiu a verosimilhança da personagem e estragou o usufruto da história, este livro tem momentos muito interessantes, nomeadamente a forma como a personagem principal se vai apercebendo do percurso pessoal do seu pai, bem como de outros historiadores envolvidos na perseguição a Drácula... e o fim que estes tiveram. Quem se interessar por História encontra aqui uma grande oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos sobre o Império Otomano, os inimigos de Drácula e invasores de Constantinopla (de que não se fala no Ocidente de acordo com a sua importância, e que se revela no momento político mundial uma boa fonte de compreensão para entender os conflitos que ainda hoje existem com o Islão).
Outra das características deste livro são as muitas viagens dos personagens (e as inescapáveis descrições que estes fazem delas), que nos leva a desejar que o livro seja brevemente posto em filme... para ver as paisagens!, o que da minha parte é possivelmente a pior crítica que posso dirigir a um livro. Um bom livro, com ou sem descrições, não precisa de um filme que o ilustre. Este, infelizmente, precisa, apesar das descrições palavrosas que me deixaram exactamente na mesma: passa lá para a acção e larga a foto para os directores artísticos.
Por falar em acção, quando a história se afasta da comovente relação entre o pai e a sua filha, e se aventura por arrebates de adaga e pistola, o resultado é fraco, no pior sentido do hollywoodesco, e nota-se ali que houve uma piscadela de olho ao ensaio de um argumento... e não de um livro, o que mais uma vez não é abonatório para o livro.
Não quero aqui revelar o fim, porque é sempre indecente fazê-lo, mas não posso deixar de acrescentar que também este me pareceu hollywoodesco, um fim feliz e "inócuo" . -- Lá está, não posso justificar para além disto de modo a não prejudicar futuros leitores! -- Posso no entanto garantir o seguinte: o livro promete muito mais do que oferece, e teria ganho bastante em abandonar os clichés e enterrar-se, tão subtilmente como começou, num final sombrio, soturno, um final como o som oco do fechar de uma tampa de caixão.
Apesar das críticas que tenho a apontar, a nota é positiva, e este é sem sombra de dúvidas um bom livro (não tão bom como as críticas o anunciam, mas um bom livro) que interessará a todos os amantes de vampiros e de Drácula em particular. Pena que a autora não tivesse conseguido transformá-lo, apesar da tentativa de sair do estereotipo, numa personagem "real", de "carne e osso", ficando-se pelo limitado "monstro" a duas dimensões que nunca chega a convencer o leitor treinado.
Original em Gotika
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