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sexta-feira, 7 de maio de 2010

"O Castelo de Otranto", por Horace Walpole

Não sei se esta foi a primeira vez que li "O Castelo de Otranto". Lembro-me de ter estado várias vezes na Feira do Livro, com este nas mãos, folheando e questionando se deveria ou não comprar. Se comprei, e se li, não me lembrava absolutamente nada da história. Algo me diz que não cheguei a ler, por duas razões. A primeira, porque me parecia um conto demasiado pequeno em que gastar o meu dinheiro (sempre preferi histórias longas). A segunda, porque folheando não me pareceu suficientemente sobrenatural numa altura em que eu procurava sobretudo os clássicos mais marcantes.
Isto, de procurar o mais gritante, em si também é curioso, porque a um leitor é necessário conhecer os extremos antes de conseguir apreciar a subtileza do intermédio.
Só agora, finalmente, me debrucei sobre "O Castelo de Otranto", considerada a primeira novela gótica, e a li com outros olhos, e uma uma outra percepção tão vasta e profunda que milhentas ideias me surgiram de seguida. Não sei se conseguirei expor sequer algumas. Foi uma espécie de turbilhão que ainda tem de ser melhor estudado. (Quando digo "estudado", refiro-me à análise mais cuidada desta minha tese embrionária.)
"O Castelo de Otranto" conta uma história interessante sobre um tirano que tudo faz para manter a descendência masculina do seu principado de modo a que este não se extinga por falta de legítimos herdeiros. E é isto, não há nada mais. A maldição, os "efeitos sobrenaturais", são secundários. Por alguma razão lhes chamo "efeitos", como se aplica o termo nos filmes. O que é realmente interessante na história é a forma como Manfred tenta manipular todos os que entram em contacto com ele, e a profundidade psicológica desta personagem escrita no século XVIII (1764). Por isto, sim, fiquei maravilhada.
E decidi procurar mais sobre a "novela gótica". Diz a wikipedia: a novela gótica é um género literário que combina elementos de horror e romance.
Foi aqui que a minha mente se pôs a trabalhar a 1000 à hora. Não a respeito da novela gótica clássica, mas de tudo aquilo que actualmente caracteriza o movimento gótico como o conhecemos. Haverá, actualmente, uma literatura gótica, isto é, moderna? E terá já alguma coisa a ver com o clássico?
Afinal, quanta música gótica trata de fantasmas? Vejam-se os clássicos. As referências são muitas, mas os fantasmas já não estão no exterior. Os fantasmas, actualmente, são projecções dos medos inconscientes. (Freud fazia mesmo muita falta à literatura). E se é a profundidade psicológica de uma personagem como Manfred que me toca, não o é menos o drama existencial dos vampiros de Anne Rice, que já não são personagens de terror, são seres humanos que por acaso são vampiros e que por essa razão conseguem analisar a condição humana por uma lente privilegiada. Na minha opinião, há muito que a literatura que é lida pelo movimento gótico se afastou do "terror" clássico, mais ou menos da mesma maneira que alguém disse dos Joy Division que os seus temas eram góticos, e não consta que falassem de fantasmas. Pelo menos dos fantasmas de fora. E há muito tempo que o verdadeiro terror vem das profundidades da alma, sem sequer a necessidade de o projectar num monstro algures na noite lá fora. A banda que melhor conseguiu fazer esta ligação, escrevendo canções de amor que algumas pessoas interpretaram como a possessão por um íncubo, foram os Fields of the Nephilim. Quando alguém comentou isto, mais ou menos na brincadeira, eu lembro-me de ter perguntado: não é isso que é o sexo, qualquer e todo o sexo? Qual é a diferença? E se é assustador? E desde quando sentir que a felicidade depende de um ser que nos é alheio e incontrolável não é assustador? Para quê mais monstros, se já há tantos onde eles realmente existem e sempre existiram?
Eram muito ingénuos, estes primeiros escritores góticos, mas enfim... Freud fazia falta.



Original in Gotika

sábado, 17 de outubro de 2009

"O Historiador" ("The Historian") por Elizabeth Kostova





Vlad Drakul, o Empalador, príncipe da Valáquia (retrato)


Não, eu não acredito que se nos dias de hoje Vlad Drakul fosse vivo, ou morto-vivo, que é a mesma coisa, se tornasse num estudioso rato de biblioteca. Custa-me até conceber como pode alguém ter tal ideia, excepto se a autora andou a ler Anne Rice e confundiu Drácula com o vampiro Marius, esse sim, um coleccionador, um historiador, um erudito. Mas o vampiro Marius era um civilizado e educado cidadão do Império Romano, não um sociopata que ficou infame para a História sob o nome de o Empalador. Tamanha mudança de personalidade, não obstante os 500 anos do vampiro, ou nunca aconteceria ou teria de ser muito bem explicadinha - e nisto a autora não convence o leitor familiarizado com a carreira do sociopático príncipe da Valáquia, ao lado do qual, devido à sua desumana crueldade, o próprio Hitler nem parece um mau rapaz.
Posto isto, que de alguma forma destruiu a verosimilhança da personagem e estragou o usufruto da história, este livro tem momentos muito interessantes, nomeadamente a forma como a personagem principal se vai apercebendo do percurso pessoal do seu pai, bem como de outros historiadores envolvidos na perseguição a Drácula... e o fim que estes tiveram. Quem se interessar por História encontra aqui uma grande oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos sobre o Império Otomano, os inimigos de Drácula e invasores de Constantinopla (de que não se fala no Ocidente de acordo com a sua importância, e que se revela no momento político mundial uma boa fonte de compreensão para entender os conflitos que ainda hoje existem com o Islão).
Outra das características deste livro são as muitas viagens dos personagens (e as inescapáveis descrições que estes fazem delas), que nos leva a desejar que o livro seja brevemente posto em filme... para ver as paisagens!, o que da minha parte é possivelmente a pior crítica que posso dirigir a um livro. Um bom livro, com ou sem descrições, não precisa de um filme que o ilustre. Este, infelizmente, precisa, apesar das descrições palavrosas que me deixaram exactamente na mesma: passa lá para a acção e larga a foto para os directores artísticos.
Por falar em acção, quando a história se afasta da comovente relação entre o pai e a sua filha, e se aventura por arrebates de adaga e pistola, o resultado é fraco, no pior sentido do hollywoodesco, e nota-se ali que houve uma piscadela de olho ao ensaio de um argumento... e não de um livro, o que mais uma vez não é abonatório para o livro.
Não quero aqui revelar o fim, porque é sempre indecente fazê-lo, mas não posso deixar de acrescentar que também este me pareceu hollywoodesco, um fim feliz e "inócuo" . -- Lá está, não posso justificar para além disto de modo a não prejudicar futuros leitores! -- Posso no entanto garantir o seguinte: o livro promete muito mais do que oferece, e teria ganho bastante em abandonar os clichés e enterrar-se, tão subtilmente como começou, num final sombrio, soturno, um final como o som oco do fechar de uma tampa de caixão.
Apesar das críticas que tenho a apontar, a nota é positiva, e este é sem sombra de dúvidas um bom livro (não tão bom como as críticas o anunciam, mas um bom livro) que interessará a todos os amantes de vampiros e de Drácula em particular. Pena que a autora não tivesse conseguido transformá-lo, apesar da tentativa de sair do estereotipo, numa personagem "real", de "carne e osso", ficando-se pelo limitado "monstro" a duas dimensões que nunca chega a convencer o leitor treinado.



Original em Gotika

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

"O Cocheiro da Morte", de Selma Lagerlöf

«De acordo com a lenda escandinava, o último homem a morrer no último dia do ano torna-se imediatamente o cocheiro predestinado da Morte: agarra numa foice e vai de casa mortuária em casa mortuária, durante trezentos e sessenta e cinco dias, recolher os mortos, até que um outro o substitua no dia de S. Silvestre... Sobre este tema, Selma Lagerlöf (Prémio Nobel de Literatura) escreveu um dos seus mais curiosos e obcecantes romances que deu origem a várias adaptações cinematográficas (...)»

in "O Cocheiro da Morte", de Selma Lagerlöf

"Já viram com certeza gravuras representando a Morte, e viram-na sempre a andar a pé. Razão porque o cocheiro de que vos falo não é a Morte em pessoa, mas apenas o seu criado. Compreendem que um personagem tão importante só se digna recolher a fina flor da colheita, e é ao seu cocheiro que confia a tarefa de juntar as pobres ervinhas que crescem à borda dos fossos."
(...)
"Mas compreendem agora do que é que o meu camarada tinha medo. Era de morrer precisamente à meia noite, na véspera do Ano Novo, e de se tornar o cocheiro da Morte. Suponho que imaginava ouvir durante todo o dia o coche funerário a chiar e a baloiçar sobre as estradas. E, imaginem, parece que morreu no ano passado, precisamente na noite de S. Silvestre.
- E mesmo à meia-noite?
- Sei, apenas que morreu à noite, mas ignoro a hora. Poderia, aliás, ter-lhe predito que havia de morrer nesse dia, tal era o medo que tinha. Se uma ideia parecida se apoderasse de vocês, eram capazes de ir também."


Li pela primeira vez esta história numa época mental muito susceptível, devia ter menos de 17 anos, e em mim estas palavras suscitaram não o horror mas um enriquecimento mitológica que antes não tinha (a lenda é escandinava) e nunca mais me abandonou. Com o passar dos anos -- e à medida que os anos passam é forçoso que o ser humano se questione o que fará depois da morte, se alguma coisa... -- surgiu em mim a fantasia do cocheiro do Morte, vinda directamente deste livro. Fantasia? Não. Projecto. Se me fosse dado a escolher, tornar-me-ia o cocheiro da Morte dos animais: recolhendo todos os despojos dos matadouros, todos os pequenos corpinhos destroçados à beira de estradas do ser humano egoísta, todos os animais de estimação perdidos no vazio. Seria a cocheira da Morte dos meus melhores amigos.
"Se uma ideia parecida se apoderasse de vocês, eram capazes de ir também"?...

"O Retrato de Dorian Gray" (The Picture of Dorian Gray), de Oscar Wilde

A história é sobejamente conhecida. Dorian Gray foi até incluído como personagem do filme "Liga de Cavalheiros Extraordinários", interpretado por não outro que que Stuart Towsend, o Lestat de "A Rainha dos Vampiros" (e não lhe correu nada mal). A história de Dorian Gray é tão interessante pela acérrima crítica social às elites da burguesia e nobreza inglesas do século XIX (com uma ironia, direi mesmo sarcasmo, e sentido de humor que me faz lembrar o muito nosso Eça de Queirós, e cujas citações mais assombrosas publiquei aqui no último mês), como pelo elemento sobrenatural que rege toda a história (e por elementos sobrenaturais os nossos escritores nunca se interessaram, o que é uma pena).
Dorian Gray é um rapaz oco, fútil e vazio. Acima de tudo, influenciável pelo intelecto superior e hedonista de Lord Henry, seu amigo, que o convence da sua beleza e da sua importância e o torna não apenas vaidoso como, ao longo da sua vida, cada vez mais perverso e insensível ao sofrimento dos outros. Lord Henry, neste livro, funciona como o Diabo, o tentador, que incute no jovem o valor verdadeiramente satânico do culto da invidualidade e do prazer, mas sempre através de subtis sugestões e filosofias, sem nunca poder ser acusado pelos crimes que, debaixo da sua influência, Gray acaba por cometer sem um pingo de remorso, incluindo o assassínio a sangue frio de um dos seus melhores amigos. Poder-se-à perguntar se o jovem Dorian Gray, antes de cair nas "garras" do seu luciferino mentor, era efectivamente tão oco e fútil como fazia crer, ou se havia já nele a semente ruim da maldade só à espera de um jardineiro que a fizesse florescer em frutos do Mal. Esta é uma das muitas interrogações morais que Oscar Wilde vai colocando ao longo da obra, cuja grande metáfora é o retrato, um retrato verdadeiro, não simbólico, do jovem Dorian Gray, onde por magia se projecta toda a maldade de Dorian enquanto este permanece belo e jovem para sempre. Uma espécie de pacto com o diabo sem que o diabo seja necessário.
Na sua grande inteligência, o que Oscar Wilde faz é desmascarar todos os outros "retratos escondidos" atrás da hipocrisia de uma sociedade em que a imagem vale mais do que o Ser.
Nunca uma obra foi tão actual.

domingo, 28 de setembro de 2008

"Os Paraísos Artificiais", por Charles Baudelaire

O que me leva a ler de novo "Os Paraísos Artificiais", de Charles Baudelaire, um tratado sobre o haxixe e o ópio, tanto anos depois de o ter lido sem ficar invulgarmente impressionada? Se calhar a mesma razão que me levou a comprar o livrinho: o desejo de conhecer um paraíso artificial. Duvido mesmo, quando o adquiri, que soubesse que tratava de drogas. Talvez tenha ficado até algo desapontada. Talvez estivesse à espera de uma experiência mística. Um outro tipo de paraíso artificial que vim mais tarde a encontrar numa outra embriaguez que é a Fé.
Mas não recuso que as drogas e as suas promessas sempre exerceram em mim um fascínio tão sobrenatural que parecia conhecê-las já antes de as saber nomear. Muitas bandas góticas se debruçaram também sobre o tema (os Sisters of Mercy em especial), com o mesmo fascínio pelo escapismo fácil destes "paraísos" que não existem sem um respectivo "inferno".
De modo que chego à mesma conclusão que Baudelaire exalta no fim do livro, e que fica aqui para nunca me esquecer, mesmo que o livro acabe por desaparecer da minha colecção:

EMBRIAGAI-VOS

Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que esmaga os vossos ombros e vos faz pender para a terra, deveis embriagar-vos sem tréguas.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos.
E se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais, já diminuída ou desaparecida a embriaguez, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio, vos responderão: "São horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha."

Nota curiosa: Para os capítulos sobre o ópio, Baudelaire analisa as confissões de outro autor, Thomas de Quincey ("Confessions of an English Opium Eater"). Thomas de Quincey é também o escritor do livro "Do assassínio como uma das belas artes", uma prosa sarcástica e cheia de humor negro cuja leitura também aconselho.